Taiguara, in memorium - Por Arthur Dapieve

Hoje em dia talvez esteja fora de moda citar Milan Kundera. Esta coluna, porém, como já deve estar dando para notar em dois meses e meio de vida, está se lixando para modas. Portanto, vamos a uma citação do tcheco Kundera, autor de "A insustentável leveza do ser": "A luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento." Pode-se acrescentar a esta bela frase que uma lembrança plantada – como a dos replicantes de "Blade runner" – pode ser ainda mais danosa que o esquecimento. O cantor Taiguara é vítima, pós-morte, de uma lembrança plantada. Ele foi estigmatizado como um baladista grandiloqüente, sentimental, coisa inofensiva para o poder contra o qual ele persistentemente ergueu sua voz: o da ditadura militar brasileira de 1964/1989.

Morto em 1996, aos 50 anos, de um câncer na bexiga, Taiguara Chalar da Silva ficou marcado – exceto na memória de fãs obstinados que o cultuam inclusive na Internet – como mais um daqueles cantores românticos que pulavam no país na virada dos anos 60 para os 70, fazendo sucesso, em seu caso, com músicas como "Universo do teu corpo" e "Hoje". Só que enquanto uns bradavam "eu te amo, meu Brasil, eu te amo, meu coração é verde, amarelo, branco, azul anil", consciente ou inconscientemente se alinhando ao ufanismo do regime dos generais, ele proclamava seu amor pelos habitantes desta terra e de todas as terras com letras como a de "Que as crianças cantem livres" (1973): "Vê como um fogo brando funde um ferro duro/ Vê como o asfalto é teu jardim se você crê/ Que há um sol nascente avermelhando o céu escuro/ Chamando os homens pro seu tempo de viver".

Nascido em Montevidéu, capital do Uruguai, a 9 de outubro de 1945, filho de um bandeonista, Ubirajara Silva, e de uma cantora, Olga Chalar, Taiguara veio para o Brasil aos 4 anos, primeiro se estabelecendo com a família no Rio de Janeiro. Aos 15, os Chalar da Silva foram morar em São Paulo. Mais tarde, adulto, o cantor passaria temporadas nem sempre voluntárias na Inglaterra, na França, na Tanzânia, na Etiópia e nos Estados Unidos. Nessa vivência fortaleceu-se uma visão internacionalista, em tudo oposta ao sistema de Governo imposto ao Brasil naquele tempo: Taiguara era comunista, chegando a dedicar uma música ao "Cavaleiro da Esperança", ou seja, ao dirigente Luís Carlos Prestes. Por isso, enfrentou sérios problemas na carreira, vivendo às turras com a Censura Federal.

Além desses, porém, há ainda um outro Taiguara, para a qual me chamava a atenção o amigo Henrique Koifman: o experimentador instrumental. Este estudou regência a fundo, inclusive fora do Brasil. Desta faceta, o melhor exemplo em disco é "Imyra, tayra, ipy, Taiguara", seu nono e antepenúltimo LP, lançado em 1976, pela EMI – mas nunca relançado em CD. Há apenas cópias piratas na praça. No trabalho de quase 44 minutos, os arranjos e orquestrações são divididos pelo próprio Taiguara (que também toca piano, sintetizador e melotron) e por Hermeto Pachoal (que também toca flauta e flauta-baixo). A regência é de Wagner Tiso. Os outros músicos participantes são "simplesmente" Nivaldo Ornellas (sax soprano e tenor, flauta), Toninho Horta (violão), Jaques Morelembaun (violoncelo), Lúcia Morelembaun (harpa), Novelli (contrabaixo), Paulinho Braga e Zé Eduardo (bateria e percussão), além de Ubirajara Silva e de uma orquestra.

Rompimento com as baladas, "Imyra, tayra, ipy, Taiguara" – traduzido do tupi no encarte como "árvore, filho, princípio, livre" – era para ter sido lançado por esta superbanda com um show nas ruínas das Missões, no Rio Grande do Sul, no dia 1º de maio de 1976, Dia do Trabalhador. O espetáculo foi cancelado por ser considerado subversivo pelas autoridades. No disco, no entanto, embora estejam presentes as facetas romântica e engajada do cantor, a que fala mais alto neste começo de século XXI é a do arranjador. Em outras palavras, o contexto histórico do trabalho foi superado – embora seja razoável supor que não do ponto-de-vista do próprio Taiguara – mas ele continua desafiador e moderno. O cantor e Hermeto Paschoal o conceberam como um caleidoscópio sonoro de 14 faixas interligadas, a traçar um perfil musical do Brasil e do próprio Taiguara. Todas as composições são dele, exceto "Três pontas", de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos.

Taiguara foi antes de qualquer coisa um bossa-novista ou – para ficarmos de acordo com Tom Jobim – foi sempre um sambista. Cantava num bar de São Paulo, o João Sebastião, quando foi contratado pela Philips para gravar um primeiro LP, "Taiguara" (1965), que ensejou seu retorno ao Rio. No ano seguinte, participou do filme (e da trilha-sonora) "Crônica da cidade amada", ao lado de Billy Blanco, Blecaute e Grande Othelo, e do show (e disco) "Primeiro tempo: 5 x 0", com a cantora Claudette Soares e o Jongo Trio, formado por Cido Bianchi (piano), Sabá (contrabaixo) e Toninho (bateria), também veteranos da noite. Em "Imyra, tayra, ipy, Taiguara", a bossa nova está presente, por exemplo, na emocionante "Terra das palmeiras", na qual Hermeto cita (ou é impressão?) "A Marselhesa". A letra não deixa margem a dúvidas: "Sonhada terra das palmeiras/ Onde andará teu sabiá?/ Terá ferido alguma asa? Terá parado de cantar?/ (...) Ah, minha amada amordaçada/ De amor forçado a se calar".

Esta canção se liga a outra belezinha, a libertária "Como em Guernica", cantada em castelhano. É um hino de resistência – a Franco e a qualquer outro generalíssimo – quebrado apenas pelo instrumental "A volta do pássaro ameríndio", espaço para Toninho Horta brincar e brilhar, dialogando com Taiguara, ao piano. Mais que a música propriamente dita, o título invoca o interesse do cantor pela produção e pela integração latino-americanas, das quais ele mesmo era um bom exemplo. Desse modo, quando o bandoneón típico do tango surge no lugar da sanfona no frevo "Primeira bateria" tudo fica perfeitamente no lugar, Buenos Aires-Recife, com escala em Montevidéu. Antes, Taiguara cai no samba explícito com "Samba das cinco". Canta sempre com tanta intensidade e sinceridade que merece ser lembrado. Como convém.

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