O Brasileiro Taiguara, no japão - Assis Ângelo

Poucos artistas foram tão necessários à cena musical brasileira como Taiguara Chalar da Silva, nascido em outubro de 45 em Montevidéu, Uruguai, quando Hitler e Mussolini ainda insistiam em fazer deste mundinho de Deus uma bola de chutar.

Taiguara era uma figura e tanto!

Se alguém quisesse vê-lo irritado, que o chamasse de estrangeiro; e se o chamasse, que se preparasse para correr ou ficar e ouvir umas boas, já que não era de levar desaforo para casa. Parecia ter fogo nas ventas, o danado.

Deixou um legado musical comparável a pérolas do mais alto quilate.

E não quero aqui falar das canções clássicas como Hoje, Viagem, Universo no Teu Corpo, Que as Crianças Cantem Livres e nem dos nossos encontros no bar da esquina tomando jurubeba leão do norte; e chimarrão, na minha casa. Tampouco quero lembrar a vez que me pediu para levá-lo ao apartamento do cantor e compositor paraibano Geraldo Vandré, para um dedo de prosa.

por que deveria lembrar o dia que duvidou que eu, trabalhando na TV Globo, mandasse registrar uma de suas passagens de som no Anhembi, em São Paulo, para o jornal da noite? E por que também deveria lembrar que foi gravado pelos franceses Françoise Hardy e Maurice Monthier? Que importância tem? E pelo sueco Jay Jay Johanson? Ah! Contar que ele próprio se aventurou na língua de Shakespeare? Não, nada disso. Pra quê?

Também não quero lembrar o óbvio: que foi o artista que mais teve composições classificadas nos festivais de música popular no País.

Há como esquecer a interpretação que deu à Modinha, de Sérgio Bittencourt, e à Helena, Helena, Helena, de Alberto Land?

Em compensação, eu poderia lembrar que este ano há pelo menos duas boas razões para se falar dele. Uma triste: o seu desaparecimento do mundo dos vivos. A outra alegre: a sua estréia em disco, ocorrida em 1965.

O que quero lembrar, mesmo, é que no baú das suas obras se acha o elepê Imyra, Tayra, Ipy, de 1976, recolhido das lojas 72 horas depois de lançado, por força do governo militar. É relíquia nunca ouvida no formato cedê. Nunca aspas, pois essa relíquia acaba de ser relançada no Japão. Em cedê, e eu disse: no Japão. Uma de suas filhas, Imyra, se indignou com a notícia:

– Não é justo que os brasileiros paguem em dólares para ouvir o meu pai.

Aproveito para gritar: cartolas da Odeon relancem logo os discos de Taiguara, pois as novas gerações não podem ficar alheias a eles. Precisam conhecê-los para saber que no Brasil já houve quem fizesse bonito: o operístico Carlos Gomes, o chorão Callado, a chorona Chiquinha Gonzaga, o frevista Capiba, o bandolinista Jacob, o violonista Dilermando, o sambista Noel, o sanfoneiro Gonzaga, o mineiro Ary Barroso...

As palavras que dão título ao disco são mantras tupis, no esclarecer do próprio artista: imyra, uma volta à infância no bairro carioca de Santa Tereza; tayra, o sêmen do tempo; e ipy, o encontro ou mistura do velho com o novo.

Mais ou menos isso.

Nesse disco, ele se atira às raízes brasileiras a partir de “Quarup”, de Antonio Callado, mostrando que não se deixou levar pelo fácil canto falso das sereias multinacionais; e que soube, como poucos, usar as armas do inimigo para se fortalecer, não deixando de registrar sua obra no vinil por serem estrangeiras as gravadoras instaladas no Brasil. Assim, com esperteza, talento e determinação ele legou para a posteridade um punhado de sambas e canções, no meio alguns experimentos dodecafônicos, como Sete Cenas de Imyra.

No Imyra há letras e melodias absolutamente fantásticas.

Pra começar, abre com Pianice, uma “pecinha sinfônica” em que o autor usa o seu piano amestrado e segue lírico em Delírio Transatlântico e Chegada no Rio, passando pela saudade que morria do Brasil no exterior contida no lamento Terra das Palmeiras, inspirado no poema Canção do Exílio, de Gonçalves Dias; e fecha com a pequena peça de pouco mais de um minuto Outra Cena, em que usa a voz e o piano para falar de sol, seca, sertão, povo, ladrão. Antes, na faixa penúltima (Primeira Bateria), clama por liberdade com a conivência do bandoneon ensinado do pai, Ubirajara.

E por aí ele vai que nem um mago trocando o condão pela batuta, enquanto se investe de maestro ao lado do bruxo Hermeto, na flauta; de Toninho Horta, no violão; de Novelli, no baixo acústico; de Nivaldo Ornellas, no sax; de Lúcia Morelembaun, na harpa... De músicos, enfim, de primeiríssima linha.

Se por cá estivesse, certamente sorriria ao ler este texto e levantaria o braço direito com o punho cerrado, dizendo:

– Viva o Brasil, companheiro!

Era o seu jeito.

Veja também outros artigos e críticas

A obra-prima de Taiguara (e uma pequena reflexao sobre a MPB) - Arnaldo DeSouteiro

(...) A obra-prima da carreira de Taiguara pertence a uma época distante, na qual inexistia a ridícula divisão entre música instrumental e vocal, que ajudou a colocar nossos músicos num gueto sem saída, cultivando o ódio aos canários, numa falsa presunção de que toda música instrumental é de alta qualidade e toda música vocal, inferior. "Imyra, Tayra, Ipy, Taiguara" tem faixas cantadas, outras instrumentais. Mas todas sensacionais, transbordando criatividade, fruto de uma união de talentos poucas vezes vista em produções da MPB. Entre os mais de 80 participantes estão alguns dos nossos maiores músicos (...)

» Veja o artigo completo

Taiguara, in memoriam - Arthur Dapieve

(...) há ainda um outro Taiguara, para a qual me chamava a atenção o amigo Henrique Koifman: o experimentador instrumental. Este estudou regência a fundo, inclusive fora do Brasil. Desta faceta, o melhor exemplo em disco é "Imyra, tayra, ipy, Taiguara", seu nono e antepenúltimo LP, lançado em 1976, pela EMI – mas nunca relançado em CD.(...)O cantor e Hermeto Paschoal o conceberam como um caleidoscópio sonoro de 14 faixas interligadas, a traçar um perfil musical do Brasil e do próprio Taiguara.(...)

» Veja o artigo completo

Imyra, Tayra, Ipy (EMI, 1976) - Thomas Pappon

(...) Taiguara, com o auxílio de Hermeto e Wagner Tiso (regente e produtor do disco), criou um filho único na MPB. Uma obra brilhante e intrincada, diretamente conectada com o momento na história brasileira. (...)

» Veja o artigo completo

Imyra, Tayra, Ipy - Taiguara (Odeon, 1976) - Ricardo Schott

(...) O disco era um relato das mais recentes experiências do cantor - que havia buscado suas raízes ao relacionar-se com tribos indígenas e se aprofundara nos estudos de música. O disco ia além da sonoridade pop dos primeiros álbuns, ao incluir efeitos de gravação, camadas de experimentalismo, progressivices e toques de música latino-americana. A produção foi caprichada - o time que foi para o estúdio em Imyra, Tayra... incluía cerca de 80 músicos, que iam desde Wagner Tiso (que produziu e tocou no LP) até Hermeto Paschoal, que fez alguns arranjos e contribuiu para o clima experimental do álbum (...))

» Veja o artigo completo

REDES SOCIAIS

A reprodução do conteúdo deste site, sem a devida requisição e subseqüente aprovação, não é permitida. Para requisitar o uso de materiais, favor utilizar o formulário de contato.