Imyra, Tayra, Ipy (EMI, 1976) - Thomas Pappon
Taiguara, nascido no Uruguai, aprendeu música em casa com os pais e na “noite” de São Paulo, tocando e cantando em boates, no crepúsculo da bossa-nova. Depois de participar de alguns festivais, emergiu para uma relativa fama de cantor e compositor romântico, graças à clássicos como “Hoje”, “Viagem” e “Universo no teu Corpo”.
No início dos anos 70, ele deu uma guinada no seu trabalho. Possuído pela febre da militância contra a ditadura militar, Taiguara introduziu conteúdo político às letras, tornando-se um dos artistas mais censurados dos tempos do AI-5. Em 73, fez o excelente álbum Fotografias (EMI-Odeon) e se mandou para Londres, onde passou um ano e meio estudando composição e arranjos.
Quando voltou ao Brasil, Taiguara estava no auge de sua formação musical. Era um cantor, compositor, arranjador e orquestrador completo, viajando em ideais de conscientização político-ecológica e em sonhos hippie-utópicos de renascença da cultura tupi-guarani. No início de 76, com um time de músicos que deixaria Sting com inveja, ele gravou, nos estúdios da Odeon, no Rio de Janeiro, o seu Sgt. Peppers.
Imyra, Tayra, Ipy, uma produção bombástica, com orquestra de 64 músicos participando de quase todas as faixas, arranjos requintados (de Taiguara e Hermeto Paschoal) e com um “conceito” permeando as composições em clima de ópera-MPB, não obteve a mínima divulgação, vendeu pouco e sumiu rapidinho do catálogo da EMI. O disco deve ter sido considerado “difícil” e incômodo pelo forte teor contestatório (hoje é artigo de luxo nos principais sebos do país e teve relançamento de luxo em CD no Japão, onde existem pessoas que gostam mais de MPB do que nós).
Taiguara estetizou suas impressões do retorno ao país. O impacto do desembarque num Rio belo e caótico, está nas duas vinhetas instrumentais de abertura. Mal o artista chega, logo se engaja nas causas do povo oprimido. Ele atende ao apelo popular em “Público” - talvez a única música do álbum que chegou a tocar em rádios FMs. Até o fim, o disco é panfletário, mesmo que nas entrelinhas - opção tática para driblar a censura. O próprio Taiguara, sozinho ao piano, na última música, “Outra Cena”, alerta para o conteúdo ambivalente das letras (“só não entendeu quem não quis”). Em metáforas românticas, o compositor sonha com a unidade latino-americana (“Como em Guernica”), com o fim da censura (“Terra das Palmeiras”), com a revolução (“Sete Cenas de Imyra”) e o fim da ditadura (“Situação” e “Aquarela de um País na Lua”, uma agressão modal ao ufanismo de Ary Barroso).
As letras dão unidade à diversidade e riqueza dos temas e arranjos. Exceto por algumas intervenções discretas de moog e mellotron, a intrumentação é toda acústica. O ritmo é sempre samba, quando não é desfigurado por contra-tempos, passagens súbitas ou batidas incomuns (como o 7 por 4 de “Sete Cenas de Imyra”). A incrível alternância entre os instrumentos e a variedade de timbres que entram e saem não deixam um único compasso ser igual ao outro. O violão de Toninho Horta em “Aquarela de um País na Lua” e a bateria speed-samba de Zé Eduardo Nazário em “A Volta do Pássaro Ameríndio” são pequenos destaques em um disco onde todos tocam, precisamente, em função do arranjo. Até a voz de Taiguara, que foi, verdade seja finalmente dita, um dos maiores cantores do Brasil, capaz de sentir à flor da pele – e fazer sentir - cada sílaba de cada palavra, o que ele prova aqui em várias faixas, como “Situação”, “Sete Cenas de Imyra” e “Como em Guernica”, executa, várias vezes, tarefas instrumentais.
George Martin ou Rogério Duprat não teriam orquestrado ou dirigido essas gravações de forma mais eloquente. Taiguara, com o auxílio de Hermeto e Wagner Tiso (regente e produtor do disco), criou um filho único na MPB. Uma obra brilhante e intrincada, diretamente conectada com o momento na história brasileira. Tentando fazer uma explicação mais tosca, dirigida aos que, como eu, amam fazer listas e discutir os melhores discos da MPB, eu diria que Imyra... combina a riqueza de idéias e melodias de Clube da Esquina com o vigor e arrojo instrumental de Egberto Gismonti e o ardor (e a ingenuidade) de Geraldo Vandré.
Curiosamente, a trajetória posterior de Taiguara é comparável à de Arnaldo Baptista, outro gênio criador de uma pérola incomparável na MPB, o disco Loki?. Sensíveis e extremamente vulneráveis à influência de outras pessoas ou grupos, ambos acabaram meio que se perdendo, um com ácido, e o outro, Taiguara, com doses maciças do jornal “A Hora do Povo”, porta-voz dos stalinistas histéricos do MR-8.